No passado dia 24 de janeiro o país foi a votos para a presidência da república e, do que daí resultou gerou a estupefação de uns e inquietude de outros, mas sobretudo, não gerou uma análise do fenómeno sem ódios, sem sectarismos e sem exuberância ideológica por parte dos atores políticos em questão. O fenómeno veio como um espirro, porque descuidados estávamos, sem perceber que a vida pode sempre piorar. Existe atualmente um eleitorado, que está engrossando, que segue um novo “xamã” que dá pelo nome de André Ventura (AV) e, tudo junto, forma o chocante “CHEGA”, um partido de protesto, que está a ser utilizado como um martelo para agredir o sistema político, e que nas próximas eleições autárquicas será uma dor de cabeça para muita boa gente. E porque é que o seguem? Porque apela à emotividade das pessoas e porque conta as mentiras e as verdades que achamos que precisamos para sobreviver, mas sobretudo conta as histórias que muitos anseiam ouvir. Rotular AV de intimidante e fanfarão, “NÃO CHEGA”, porque, apesar de ser o pior de todos os maus modelos, o homem tem palco e vai evangelizando cada vez mais crentes. Com uma estratégia assente em exacerbar o medo, o ressentimento, o ódio, a paranoia, a histeria e a misoginia tanto dos apoiantes, como dos opositores, combatê-lo pela via do insulto, tem sido o clique aglutinador que ele não pede, mas que provoca e agradece.
A pergunta que se deve colocar é a seguinte: assim sendo, porque é que isso aconteceu? Obviamente, os ciganos não explicam tudo. Existem causas mais profundas que devem ser vasculhadas naquilo que a democracia tem andado a fazer aos cidadãos, ou, dito de outra forma, o que ciclicamente tem prometido e a tantos tem faltado. E depois, quando o discurso é montado em cima de algo que é real, automaticamente está legitimado. E o que é que nós temos de real? Talvez, as promessas de uma vida melhor que ciclicamente a democracia tem vindo a prometer aos seus cidadãos e que maioritariamente se têm revelado uma fraude; talvez, o galopante desequilíbrio demográfico que atira Portugal para o país mais envelhecido da EU, onde quase um quinto são idosos, revelador das reduzidas expetativas que os casais têm sobre o seu futuro; talvez, as dificuldades do SNS (a joia da coroa) afogado em listas de espera para consultas e cirurgias bem como a contínua desvalorização dos seus profissionais; talvez, o enorme endividamento público (130% do PIB), que justifica uma sufocante carga fiscal que inibe o desenvolvimento económico numa perspetiva de longo prazo, atirando o país para a cauda da Europa em termos de riqueza per capita, inclusive, atrás de países do antigo bloco comunista; talvez, o desemprego jovem (superior a 23%) e a precaridade no emprego nos jovens, onde o próprio Estado apregoa alhos e vende bugalhos, dando um péssimo exemplo quando contrata a recibo verde, deixando as novas gerações a viver de forma mais precária e a ganhar menos do que os seus pais, ao contrário do que lhes tinha sido prometido; talvez, a corrupção de cariz interclassista que campeia de norte a sul do país que tem minado alguns setores da governação, da banca e até as instituições nobres do Estado, como a Justiça, com evidente dificuldade em dar a cada cidadão o que lhe é devido; talvez, a preocupação egoísta dos interesses partidários em detrimento dos superiores interesses do país; talvez, o péssimo exemplo de “batota política” que as eleições legislativas de 2015 proporcionaram, que permitiu aos perdedores apresentarem-se como ganhadores, lançando no futuro a incerteza de que o voto de cada cidadão não voltará a ser manipulado em prol de interesses partidários e pessoais; talvez, a incapacidade do líder da oposição (coisa nenhuma), em se diferenciar da ação governativa, optando por se transformar num “seguro de vida” para António Costa; talvez, pela incapacidade do Estado em proteger os seus cidadãos em determinados momentos e se apresar a defender outros dando uma imagem de completa parcialidade; talvez, porque determinadas forças politicas adjudicaram a normalização da hipocrisia em Portugal e as pessoas disseram “CHEGA”; e talvez porque a mãe de todas as causas, que ajudam a justificar o surgimento do “CHEGA”, esteja na incapacidade de concretização dos desígnios do 25 de Abril, que, muito longe de estarem cumpridos, encontram na classe politica uma barragem gigantesca e no “CHEGA” um ilusório porto seguro.
E, visto deste prisma, talvez não seja surpreendente vermos as pessoas desconfiarem de paraísos tradicionais e a procurarem outros por muito bizarros que sejam. Apesar de AV não ser mais do que um hábil vendedor de banha da cobra a apregoar um placebo, a doença social que está a explorar existe de fato. E ignorar toda a sinalética disponível é colocar uma autoestrada para AV explorar ainda mais a aflição da sociedade portuguesa. Se assim não fosse, os seus apoiantes não estariam tão suscetíveis às lisonjas de um tão, obviamente, falso profeta. Mas, na história portuguesa, o que não tem faltado são os falsos profetas e, como ainda não “CHEGA”, este é o mais fresquinho.